segunda-feira, 31 de março de 2014

JOÃO CÂNDIDO - O ALMIRANTE NEGRO






















 João Cândido Felisberto, também conhecido como "Almirante negro" (Encruzilhada do Sul24 de junho de 1880 — Rio de Janeiro6 de dezembro de 1969) foi um militar brasileiro da Marinha de Guerra do Brasil, líder da Revolta da Chibata (1910).
Nasceu em 24 de Junho de 1880, na então Província (hoje Estado) do Rio Grande do Sul, no município de Encruzilhada (hoje Encruzilhada do Sul), na fazenda Coxilha Bonita que ficava no vilarejo Dom Feliciano - o quinto distrito do Município Encruzilhada, que havia sido distrito de Rio Pardo até 1849. Filho dos ex-escravos João Felisberto e Inácia Cândido Felisberto, apresentou-se, ainda com treze anos, em 1894, na Companhia de Artífices Militares e Menores Aprendizes no Arsenal de Guerra de Porto Alegre com uma recomendação de atenção especial, escrita por um velho amigo e protetor de Rio Pardo, o então capitão-de-fragata Alexandrino de Alencar, que assim o encaminhava àquela escola. Em 1895 conseguiu transferência para a Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre, e em dezembro do mesmo ano, como grumete, para a Marinha do Brasil, na capital, a cidade do Rio de Janeiro.
Desse modo, nos anos 1890, época, em que a maioria dos marinheiros era recrutada à força pela polícia, João Cândido alistou-se com o número 40 na Marinha do Brasil em Janeiro de 1895, aos 14 anos de idade, ingressando como grumete a 10 de dezembro de 1895.
Em depoimento para a Anamnese do Hospital dos Alienados em abril de 1911 e para a Gazeta de Notícias de 31/12/1912, João Cândido afirma ter sido soldado do General Pinheiro Machado, na Revolução Federalista, em 1893, portanto antes de entrar para a escola de aprendizes do Arsenal de Guerra de Porto Alegre.
Teve uma carreira extensa de viagens pelo Brasil e por vários países do mundo nos 15 anos que esteve na ativa da Marinha de Guerra (17 anos, se contar os 2 anos de prisão, após a Revolta). Muitas delas foram viagens de instrução, no começo recebendo instrução, e depois dando instrução de procedimentos de um navio de guerra para marinheiros mais novos e oficiais recém-chegados à Marinha.
A partir de 1908, para acompanhar o final da construção de navios de guerra encomendados pelo governo brasileiro, centenas de marinheiros foram enviados à Grã-Bretanha. Em 1909 João Cândido também para lá foi enviado, onde tomou conhecimento do movimento realizado pelos marinheiros russos em 1905, reivindicando melhores condições de trabalho e alimentação (a revolta do Encouraçado Potemkin, que virou filme do diretor Sergei Einsenstein em 1925).
Tornou-se muito admirado pelos companheiros marinheiros, que o indicaram por duas vezes para representar o "Deus Netuno" na travessia sobre a linha do equador, e muito elogiado pelos oficiais, por seu bom comportamento, e pelas suas habilidades principalmente como timoneiro. Era o marinheiro mais experiente e de maior trânsito entre marinheiros e oficiais, a pessoa indicada para liderar a revolta, na opinião dos demais líderes do movimento.
O uso da chibata como castigo na Marinha brasileira já havia sido abolido em um dos primeiros atos do regime republicano, o decreto número 3, de 16 de Novembro de 1889, assinado pelo então presidente marechal Deodoro da Fonseca. Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser aplicado, a critério dos oficiais da Marinha de Guerra do Brasil. Num contingente de 90% de negros e mulatos, centenas de marujos continuavam a ter seus corpos retalhados pela chibata, como no tempo da escravidão. Entre os marinheiros, insatisfeitos com os baixos soldos, com a má alimentação e, principalmente, com os degradantes castigos corporais, crescia o clima de tensão.
Já em 1893, na canhoneira Marajó, um contingente de marinheiros havia se revoltado contra o excesso de castigos físicos, exigindo a troca do comandante que abusava da chibata e outros suplícios. Na época, ainda não queriam o fim da Chibata, mas a troca do comandante do navio, para evitar abusos. Definitivamente, não era normal receber chibatadas. E, para piorar, os oficiais extrapolavam o limite de próprio regimento da Marinha, baseado num decreto que nunca foi publicado no Diário Oficial, que estabelecia a criação de Companhias Correcionais que poderiam indicar a punição de até 25 chibatadas, mesmo após a Abolição da Escravatura.
Ainda na Grã-Bretanha, e depois, ao retornarem ao Brasil, os marinheiros que lá estiveram para acompanhar a construção dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, e do cruzador Bahia, iniciaram um movimento conspiratório com vistas a tomar uma atitude mais efetiva no sentido de acabar com a Chibata na Marinha de Guerra do Brasil.
As eleições presidenciais de 1910, embora vencidas pelo candidato situacionista marechal Hermes da Fonseca, expressaram o descontentamento da sociedade com o regime vigente, além das denúncias de fraude e violação de urnas nos bairros em que ele não tinha maioria de simpatizantes. O candidato oposicionista, Rui Barbosa, realizou intensa campanha eleitoral, reforçando a esperança de transformações do povo brasileiro.
Esgotadas as tentativas pacíficas e propositivas dos marinheiros, incluindo uma audiência de João Cândido no Gabinete do presidente anterior, Nilo Peçanha, e na presença do ministro da marinha, Alexandrino de Alencar sem qualquer providência efetiva para o fim dos castigos físicos, os marinheiros decidiram que iriam fazer uma sublevação, uma revolta pelo fim do uso da chibata em 25 de Novembro de 1910. Inicialmente os comitês revolucionários pensaram no dia 14, depois dia 15, depois 19, e por fim fixaram o dia 25.
Entretanto, menos de uma semana após a posse do marechal Hermes da Fonseca, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido a 21 de Novembro com 250 chibatadas, que não se interromperam nem mesmo com o desmaio do mesmo, conforme noticiado pelos jornais da época, aplicadas na presença de toda a tripulação do Encouraçado Minas Gerais, nau capitânia da nova Esquadra. Este fato antecipou a data programada de 25 para 22 de Novembro de 1910. Seria na noite deste dia porque o comandante do navio Minas Gerais, o Capitão João Batista das Neves, dormiria fora do navio, e então os marujos tomariam posse das armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, e teriam o controle do navio mãe, e depois de todos os demais que estavam na Bahia da Guanabara. Entretanto o comandante Batista das Neves voltou mais cedo do que eles esperavam, e um marinheiro mais descontrolado partiu para cima do oficial de serviço, pois não queria mais o adiamento da revolta. O comandante ouve os barulhos, assim como os outros oficiais e todos vêm para o convés. Mesmo aconselhado pelo marinheiro Bulhões a se abrigar, Batista das Neves, se recusa a sair dali, e diz que não sairá de bordo do navio, insistindo em tentar fazer os marinheiros formarem e obedecerem às suas ordens. Os marinheiros já muito exaltados, ao ver que o comandante fere um dos marinheiros, começam a jogar objetos nele, e por fim um marinheiro dá um tiro na cabeça dele. Morrem no Minas Gerais além do comandante, mais dois oficiais (tenente para cima) e 3 marinheiros (sargento para baixo, na simplificação usual). Durante os combates morrem mais um oficial e um marinheiro no navio Bahia, revoltado sob responsabilidade do marinheiro Francisco Martins, e um oficial no navio São Paulo, sob responsabilidade do marinheiro Manoel Nascimento. Terminados os combates, João Cândido, um dos chefes das reuniões conspiratórias, que atuou ao lado de Vitalino Ferreira na revolta do Minas Gerais, é indicado pelos demais líderes como o comandante-em-chefe de toda a esquadra revoltada, inicialmente composta por 6 navios, e depois concentrando as guarnições em 4, entre eles os dois encouraçados fabricados na Inglaterra, considerados os mais potentes do mundo à época: Minas Gerais e São Paulo.
No dia 22 de novembro de 1910, João Cândido, ao assumir, por indicação dos demais líderes, o comando do Minas Gerais e de toda a esquadra revoltada, controla o motim, faz cessar as mortes, e envia radiogramas pleiteando a abolição dos castigos corporais na Marinha de Guerra brasileira. Foi designado à época, pela imprensa, como Almirante Negro. Por quatro dias, os navios de guerra Minas GeraisSão Paulo, Bahia e Deodoro apontaram os seus canhões para a Capital Federal. No ultimato dirigido ao Presidente Hermes da Fonseca, os revoltosos declararam: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira". A rebelião terminou com o compromisso do governo federal em acabar com o emprego da chibata na Marinha e de conceder anistia aos revoltosos. Entretanto, no dia seguinte ao desarmamento dos navios rebelados, dia 27, o governo promulgou em 28 de novembro um decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem risco, o que era um nítida quebra de palavra, uma traição do texto da lei de anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da República e sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca, conforme publicação no diário oficial de 26 de Novembro, levado ao Minas Gerais pelo capitão Pereira Leite.
Pouco tempo depois do decreto que quebrou a anistia e de boatos de que o Exército iria se vingar dos marinheiros, houve a eclosão de um novo motim entre os fuzileiros navais, ligados à Marinha, no quartel da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, em 9 de Dezembro de 1910. Não tinha ligação com aRevolta da Chibata, exceto que ali na Ilha estavam algumas dezenas de marinheiros participantes da revolta presos apesar de anistiados. A "segunda revolta" nada exigia, não tinha qualquer organização, baseava-se em boatos de que o Exército atacaria a qualquer momento navios e batalhão naval como resposta à vergonha que significou a revolta para o Governo Hermes da Fonseca. Durante o dia 10 o motim foi reprimido pelas autoridades, Marinha e Governo, com um bombardeio implacável sobre pouco mais de duas centenas de amotinados ilhados (na Revolta da Chibata eram 2.379 homens, 3 encouraçados e um cruzador, alvos móveis e fortemente armados), e serviu de justificativa para Hermes da Fonseca demandar e obter do Senado aprovação do estado de sítio (lei marcial) neste mesmo dia. João Cândido chegou a ordenar tiro de canhão sobre os marinheiros-fuzileiros amotinados na Ilha das Cobras para provar sua lealdade ao governo. Mas de nada adiantou. Com o estado de sítio, centenas de marinheiros foram dados como mortos ou desaparecidos e 2000 marinheiros foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre, destino dos 96 que lá ainda chegaram vivos.
Apesar de não haver participado da conspiração (se é que houve) deste segundo levante, João Cândido foi expulso da Marinha, sob a falsa acusação de ter favorecido os fuzileiros rebeldes. Foi preso em 13 de Dezembro no quartel do exército, e transferido no dia de natal (24 de dezembro de 1910) para uma masmorra (a cela 5) na Ilha das Cobras, onde 16 de seus 17 companheiros de cela morreram asfixiados. De seu depoimento ao jornal Gazeta de Notícias e outras fontes, descobre-se que 29 marinheiros e fuzileiros navais foram submetidos ao cal em 2 celas da Ilha das Cobras. Numa cela, morreram 16. Da outra cela, morreram mais 2. Em abril de 1911 foi transferido para o Hospital dos Alienados, como louco, mas recebeu alta e voltou para a Ilha das Cobras, de onde foi solto em 1912, absolvido das acusações juntamente com nove companheiros. À época, o seu defensor foi o rábula Evaristo de Moraes, contratado pela Ordem de Nossa Senhora do Rosário e dos Homens Pretos, que declinou o recebimento dos honorários que lhe eram devidos.
Banido da Marinha, João Cândido sofreu grandes privações, vivendo precariamente, trabalhando como estivador e descarregando peixes na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro.
De acordo com a sua ficha, nos quinze anos em que permaneceu na Marinha, foi castigado em nove ocasiões, preso entre dois a quatro dias em celas solitárias "a pão e água", além de ter sido duas vezes rebaixado de cabo a marinheiro. A sua ficha registra ainda dez elogios por bom comportamento nos últimos três meses antes da revolta.
A sua vida pessoal foi profundamente abalada pelo suicídio de sua segunda esposa (1928). Em 1930 foi novamente detido, acusado de subversão.

Em 1933 foi convidado e aderiu à Ação Integralista Brasileira, movimento nacionalista de direita inspirado no fascismo italiano fundado em 1932 pelo escritor Plínio Salgado, chegando a ser o líder do núcleo Integralista da Gamboa, bairro portuário da cidade do Rio de Janeiro. Em entrevista ao historiador Hélio Silva, gravada em 1968 e arquivada no Museu da Imagem e do Som (MIS), João Cândido declarou manter sua amizade com Plínio Salgado e de ter orgulho em ter sido integralista. O Integralismo permitia que mulheres e negros se filiassem ao partido, no que se diferenciava do nazismo. João Cândido, que era sobretudo um ex-militar que sonhava voltar à Marinha de Guerra, foi muito assediado por parte de oficiais da Marinha para que fizesse parte do movimento integralista, com a promessa de reintegrá-lo. Muitas personalidades na época aderiram ao Integralismo: o líder negro Abdias Nascimento e o bispo Dom Hélder Câmara são alguns exemplos.
Em 1949, num artigo de jornal, no "Diário de Notícias", o Almirante Alencastro Graça escreveu: "João Cândido, indivíduo de poucas prendas e até inócuo, solicitando dinheiro aos oficiais a troco de lavar-lhes a roupa, o que obstava que sofresse, por vezes, castigos corporais pelos vícios de pederastia e alcoolismo e aceitando, posteriormente, coagido, a direção do movimento revolucionário, para assistir impassível ao massacre dos antigos benfeitores, sob o controle dos verdadeiros cabeças." 
Convidado a responder ao ataque público na grande imprensa, João Cândido limitou-se a dizer: "- Contestá-lo? Como, se não tenho as letras do Almirante? O galho quebra sempre do lado mais fraco. Há anos que sou espezinhado." Portanto, assim como o jornalista-historiador Edmar Morel muito responsavelmente fez em 1959 (primeira edição do livro A Revolta da Chibata), é importante deixar o registro, e o benefício da dúvida. Além do mais, nos dias de hoje, censurar o assunto, ou julgar João Cândido por ele ter tido ou não alguma experiência homossexual é completamente fora de propósito. 
Perdura, portanto, certa controvérsia sobre a vida particular de João Cândido, precisamente no que toca à sua orientação sexual. As referências bibliográficas revelam autores que fazem ilações para o benefício de suas próprias teses. Uma análise ponderada sobre o assunto é feita pelo historiador José Murillo de Carvalho em artigo na Revista de Históri editada pela Biblioteca Nacional, que conclui:
"Os bordados revelam ainda que, do fundo de sua dor, João Cândido retirava corações, flores, borboletas, beija-flores. Em sua forma ingênua e espontânea, em seu rico simbolismo, as toalhas de São João del Rei nos bordam um João Cândido maior do que o construído por seus detratores e mais autêntico e humano do que o mito em que o pretendem transformar seus admiradores."
Devido a ser figura controversa para a alta oficialidade militar, apesar do almirante negro ter se casado oficialmente duas vezes e gerado doze filhos de quatro mulheres, há quem buscasse detalhes de sua vida pessoal tentando ligá-lo à prática homossexual, como algo desabonador, num tempo em que a homossexualidade era tida como tal.
Discriminado e perseguido pela Marinha até ao fim de sua vida, se recolheu no município de São João de Meriti, onde veio a se aproximar da Igreja Metodista do Brasil. Ali em sua casa passou mal e foi levado ao Hospital Getúlio Vargas, na capital do estado do Rio de Janeiro, onde viria a falecer de Câncer, pobre e esquecido, em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos de idade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário